A grande família

Ainda hoje, muitos executivos e empresários insistem em usar a família como metáfora da harmonia que deve, ou deveria, existir em suas empresas. Parece incrível, mas em discursos oficiais, proferidos durante eventos significativos de uma empresa, ainda pode-se ouvir: “Nós somos uma grande família…” ou, então, “Nós, da família X S.A…”. A metáfora não é boa. A primeira razão é óbvia: a própria família não é, e nunca foi, o protótipo da convivência harmônica, pretendida em alguns discursos empresariais. Choque de gerações, incompatibilidade profissional entre cônjuges, briga de irmãos, disputas de afeto são alguns dos exemplos que ilustram o ambiente turbulento da convivência familiar.

O que parece muito comum entre a família e a empresa é o fato de que falar e tratar aberta e francamente sobre essas “diferenças” internas é sinal de assumir fraquezas e pode ferir nossa imagem perante vizinhos, parentes, fornecedores, clientes, empregados, entre outros. Essa “mentira” nossa de cada dia, ou a tentativa permanente de esconder nossos “rachas internos” (familiares e organizacionais), só traz desgaste, descrédito e mais tensão ao sistema e à convivência cotidiana. Quem escuta o discurso da grande família só tem duas conclusões a tirar sobre quem o profere: ou é um desconhecedor do que de fato acontece, ou não quer ver o que de fato acontece.

E o que de fato acontece? Vamos nos limitar à realidade organizacional. Na verdade, ela é recortada internamente por grupos e indivíduos, com interesses individuais e coletivos legítimos na maioria das vezes. Não faltam exemplos desses grupos e indivíduos que convivem no dia a dia da empresa: “pessoal do staff”, “grupo da produção”, o grupo de mulheres da empresa, os casados, pessoas de potencial diferenciado, trainees, o grupo do projeto ERP, o comitê do projeto de reengenharia, a turma que pega o ônibus, a área de RH, o departamento de marketing, outros tantos.

Para cada um desses exemplos acima é possível identificar alguns interesses/expectativas inerentes ao seu trabalho e sua posição dentro da empresa. Todos nós sabemos que o pessoal do “staff” e da “linha” vive e convive com seus desencontros e conflitos cotidianamente.

E os trainees? Não são eles um grupo arrojado, pronto para assumir funções gerenciais, dispostos a inovações e que acaba incomodando os “velhos” de casa, já experientes e “calejados”?

Outro exemplo é o grupo de mulheres que exigem, no mínimo, o mesmo tratamento dispensado aos homens no que diz respeito às oportunidades de carreira, remuneração, acesso às informações etc.

Como já foi dito, esses são interesses e expectativas legítimas que fazem parte do jogo interno da empresa, não se traduzindo necessariamente em intenções espúrias e em desacordo com os objetivos, valores e a missão vigentes. Olhada e compreendida nesse prisma, a empresa se transforma em uma microssociedade, plural, com antagonismos internos e divergências saudáveis.

Esses grupos e indivíduos querem ver, obviamente, seus interesses atendidos e, se possível, garantidos por longo tempo, em função deste ou daquele cenário de mudanças que a empresa enfrenta. Daí decorrem enfrentamentos, demonstrações de força, jogos de poder, alianças e coalizões. Esse é o verdadeiro dia a dia organizacional: tenso quase que permanentemente. Não é preciso ter vergonha de reconhecê-lo e/ou aceitá-lo.

Ao contrário, seu reconhecimento em discurso e ação (que não é fácil) ajuda a elucidar e assumir a complexidade organizacional. Complexidade essa que acabamos enfrentando quando resolvemos promover mudanças profundas em estruturas viciadas e pouco eficazes para enfrentar os novos tempos. Foi nesse momento que pudemos constatar a ingenuidade, em alguns casos, e o amadorismo em outros, das nossas intervenções organizacionais. Isso porque grande parte de nossas ações para mudanças enfrentou fortes resistências de interesses internos e poucos conseguiram identificá-los, contorná-los, ou negociar com eles, para fazer valer a nova ordem pretendida.

Talvez possa parecer estranha a negociação nesse contexto, mas não é. Hoje em dia, e depois das experiências que já passamos, a eficácia da mudança organizacional depende da habilidade e da competência dos agentes de mudança “mapearem”, reconhecerem e negociarem com os grupos internos, cujos interesses efetivamente serão “incomodados” pela implantação das mudanças desejadas. Quer dizer, mudar empresas hoje não significa se livrar (às vezes até violentamente) da realidade gerencial existente e iniciar uma nova fase organizacional. Ao contrário, as mudanças devem levar em consideração e atuar sobre as condições organizacionais existentes.

Assim, a “grande família” como objetivo, e ferramenta de compreensão da realidade organizacional, só vem dificultar os esforços de desenvolvimento das empresas. Mudar hoje significa, antes de tudo, partir de uma leitura um pouco mais realista do contexto em que se vai atuar, considerar os interesses de alguns grupos como legítimos e, finalmente, negociar com eles saídas convergentes para o desenvolvimento da empresa (sejam projetos de qualidade total, reengenharia, planejamento estratégico, reestruturações etc.).

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