Sobre ratos de laboratório e executivos

“Estou me sentindo um rato de laboratório”.

 

Essa frase foi dita por um gestor de uma grande empresa, durante uma entrevista de diagnóstico, para referir-se às imposições que o ambiente e a gestão da empresa impunham a sua realização pessoal e profissional no trabalho. Estava falando de recompensas, processos e carga de trabalho. Referia-se à presença de compensações imediatas, principalmente financeiras, para sua realização no trabalho, e a uma regulamentação impositiva que castrava sua expressão criativa para realizá-lo de forma diferente. Falava ainda das jornadas excessivas e da dedicação pessoal quase que exclusiva ao trabalho. O paralelo com os ratos de laboratório parecia-lhe inevitável. Os tais ratos só recebem alguma recompensa (comida ou água) depois de cumprirem alguma manobra esperada pelo pesquisador, e não podem interferir nem discutir a forma mais adequada de realizá-la. Sem possibilidades de escolha, nem de indicar o que lhe é mais motivacional no momento para “trabalhar”, o rato “aceita” a recompensa. Além do mais, dizia, o rato não sai do laboratório, trabalho é o seu lema.

Retirando-se os exageros da analogia, e considerando que conhecemos um pouco mais sobre o significado do trabalho para o ser humano, essa frase precisa ser analisada e compreendida mais profundamente, pois chama a atenção nas organizações contemporâneas.

O aspecto mais relevante, nesse caso, nos leva ao encontro da questão dos impactos da remuneração variável, ao comportamento cotidiano e ao vínculo das pessoas com a empresa e o trabalho. Filha de uma racionalidade financeira, esse tipo de remuneração se modernizou no contexto organizacional atual, pois sempre foi conhecido, desde os tempos de Frederic Taylor, e se tornou decisivo no atingimento dos resultados organizacionais. Essa sua propriedade ninguém pode negar: resultados são visivelmente alcançados e proporcionais à recompensa financeira associada a eles.

Por outro lado, sabemos que a compensação financeira imediata provoca saltos significativos na performance das pessoas, mas não consegue sustentá-la em alta por períodos muito longos. Diferentemente das formas conhecidas como recompensas sociais e de interesse pessoal de reconhecimento, com o passar do tempo, a performance tende a cair “na espera” de outro estímulo financeiro. Dito de outra forma, esse tipo de recompensa condiciona a performance à sua presença, portanto, na sua ausência, a performance cai de frequência e tende a desaparecer.

Um exemplo pode ser em relação ao contrato psicológico (vínculo) do indivíduo com a empresa. Pode-se dizer que certamente esse tipo de recompensa faz o vínculo se volatilizar. Isso porque pessoas altamente orientadas no sentido das recompensas financeiras transferem essa lógica para o seu vínculo com a empresa e condicionam a elas sua permanência. Quer dizer, será necessário ganhar sempre para que a performance se sustente; e quando o ganho não vem, a relação de permanência é questionada. Mais ainda, sabemos que pessoas que se vinculam exclusivamente a recompensas financeiras desenvolvem insuficientemente outros comportamentos desejados na administração contemporânea, tais como: comprometimento com resultados, interesse em inovação, trabalho com qualidade, que estão associados a outras qualidades de vínculo.

Talvez a analogia daquele gestor esteja sinalizando um desconforto que pede uma mudança nas regras do jogo. A recompensa financeira continua sendo válida, porém, outros incentivos devem voltar a valer, ou pelo menos serem reintegrados ao contexto da performance humana. O reconhecimento individual e coletivo, as celebrações, a provação das competências, entre outros, continuam sendo as mais humanas das recompensas e estímulos. Produzem a saúde do vínculo, reanimam o significado do trabalho, enriquecem e potencializam resultados mais do que qualquer montante de dinheiro possa fazê-lo. Pessoas são assim, ratos são diferentes, o gestor pensa que se iguala a eles na sua angústia, mas ratos não sofrem, pessoas sim.

Um segundo aspecto dessa simples e significativa frase diz respeito à disponibilidade das pessoas para o trabalho. O rato, segundo a analogia, está 100% disponível para o trabalho no laboratório e o gestor compara-se a ele. Não se trata de um tema inédito e muito menos exclusivo desse gestor. Consultores que entram e saem de empresas todos os dias ouvindo pessoas estão acostumados a essa reclamação, infelizmente. Aqui, a questão torna-se crítica e dilemática como tantas outras no ambiente de trabalho. De fato, poucos são os que estão trabalhando menos de 11 horas por dia. Por outro lado, quem pode impedir e dizer um não a isso em nome da saúde e da vida fora do trabalho? A resposta é óbvia: é o protagonismo dos atores e agentes organizacionais. Ou assumem as condições dadas, ou transformam essas condições ou saem dessas condições; parece não existir outra saída e a decisão está sempre na mesma mão para ser tomada. Ainda existe uma posição assumida por alguns que é a de ficar na empresa e sofrer, dificultando a própria vida e reclamando de tudo e todos, menos de si. Essa é, sem dúvida, a possibilidade mais insalubre, porém é, cada vez mais, muito conhecida no cotidiano das empresas. Todos nós conhecemos alguém assim em algum lugar. De qualquer forma, a saída será uma decisão sempre na mão das pessoas; essa possibilidade não está disponível aos ratos.

Atualmente, as decisões de vínculo, carreira e motivação são muito mais existenciais do que profissionais para empresas e pessoas e, nesse caso, os ratos  de laboratório não podem nos ajudar muito.

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