Potencial humano no ambiente hierárquico

Profissionais da psicologia hospitalar estudam, entre outros temas, um fenômeno que impacta no comportamento humano no hospital conhecido como hospitalismo. De forma simplificada, trata-se da regressão de comportamento que as pessoas doentes têm ao serem internadas em um hospital. Regressão essa que decorre principalmente do fato de haver, de um lado, o monopólio do conhecimento da medicina em mãos dos profissionais que lá trabalham e, de outro, um ser humano fragilizado pela doença. O comportamento regride a tal ponto que adultos não se sentem seguros nem de realizar as manobras mais simples no ambiente hospitalar como, por exemplo, de sua higiene pessoal sem pedir permissão aos técnicos de plantão.

E será que nas empresas ocorre algum tipo de fenômeno semelhante?

Parece que a hierarquia proporciona algo parecido para quem trabalha, uma vez que ela caracteriza a ordem das coisas: como, quando e por quem devem ser feitas.

Considerada o “inimigo nº 1” na óptica da maior parte das transformações e dos programas de desenvolvimento das organizações nos últimos tempos, a hierarquia foi o alvo preferido dessas mudanças. Durante os últimos anos, foi sendo questionada, reduzida e achatada pelo menos nos lados ocidentais do mundo corporativo. Foi também acusada de dificultar o avanço da eficiência, da qualidade; enfim, da excelência requerida das empresas no século XXI.

A exemplo do hospitalismo, o “hierarquismo” foi estudado, discutido e acabou sendo considerado prejudicial à boa condição de trabalho humano nas empresas. Aprendemos rapidamente a identificar que as hierarquias rígidas, extensas (de vários níveis) e muito burocráticas distanciam as decisões de onde o fato aconteceu, retirando o poder de decidir de quem sabe e entregando-o a quem pode.

Um exemplo de um fato real ocorrido em uma fábrica ajuda a entender muito bem essas questões da hierarquia. Numa troca de turno, um auxiliar de produção está no final da linha encaixotando o último lote de produtos daquela máquina. O operador responsável pela linha estava do outro lado (no início da linha) providenciando os papéis e números para o fechamento do turno. De repente, uma embalagem com produto “enrosca” na esteira e a linha para automaticamente. O operador já não estava em seu posto. Encontrando-se, então, sozinho, o auxiliar olha ressabiadamente para os lados, certifica-se de que não há alguém olhando, abre a proteção da máquina e tenta retirar a embalagem que está travando o funcionamento da linha. Não consegue. Repete esse gesto duas ou três vezes mais, sempre olhando para todos os lados para confirmar que está sozinho, até que finalmente consegue seu intento e põe a linha em funcionamento novamente. Percebe-se, ao mesmo tempo, um alívio dele e um sentimento de missão “escondida” cumprida. Uma expressão poderia definir esse acontecimento ilustrativo: esse auxiliar de produção sabe como resolver o problema, mas não pode. Ou seja, de um lado existe e está disponível o potencial humano pronto para funcionar e, nesse caso, resolver o problema. De outro lado, está o processo de trabalho necessitando da intervenção humana inteligente.

No entanto, parece que existem alguns impedimentos invisíveis que travam, ou pelo menos dificultam, a ação do nosso protagonista. Certamente, um deles é a hierarquia, pois apesar de saber o que deve ser feito, ele não pode fazer, está determinado por uma regra hierárquica. Nessa lógica, há uma série de regras e valores que acabam interrompendo o livre e adequado fluxo entre o processo de trabalho e as pessoas.

Outro exemplo que ilustra essa questão vem de fora da empresa. Afinal, por que na vida fora da empresa uma pessoa assume responsabilidades e toma decisões de financiar sua casa própria, criar e educar filhos, abrir seu próprio negócio e na empresa não pode, por exemplo, decidir despesas acima de R$ 500,00? Ou mesmo, por que um operador não pode pedir um novo uniforme sem autorização do seu supervisor, que autoriza o chefe do almoxarifado a entregá-lo? Os exemplos são muitos, não é necessário repeti-los aqui.

Percebe-se, então, que alguns adultos regridem diante dessa hierarquia regulamentadora, assim como doentes no hospital, pois decisões eram (ou ainda são?) limitadas e distribuídas aos níveis hierárquicos segundo uma lógica hoje questionável.

Ao fazerem isso, assumem seu “não poder” e agem como crianças. Passam de protagonistas a vítimas, seu comportamento se resume em obedecer e, eventualmente, reclamar que seu potencial não está sendo utilizado plenamente. Existem outros que consideram a lógica hierárquica adequada e chegam a sentir-se bem sendo “cuidados” nela e por ela. Outros ainda estão esperando ansiosamente a vez de decidir, quando chegar sua hora de fazer parte do poder hierárquico.

É óbvio que o poder em uma empresa também é exercido fora do ambiente hierárquico, mas esse é apenas uma pequena parte dele. Está claro também que nem todos podem participar de todas as decisões. No entanto, entre a rigidez hierárquica e a liberalidade inadequada para o mundo da empresa, existem várias formas racionais, eficientes e humanas de se retirar todo e qualquer impedimento existente entre o potencial humano e o processo de trabalho reconhecendo; dessa forma, as pessoas como as verdadeiras construtoras da excelência e da qualidade do funcionamento do sistema organizacional.

Alguns modelos de estrutura e de organização do trabalho atuais já apontam para essa racionalidade. A participação e o envolvimento maduro de pessoas nos processos decisórios têm mostrado a possibilidade de diminuir a necessidade da hierarquia e, ao contrário do hospital, promove o crescimento da responsabilidade e do comprometimento de pessoas tão esperados e procurados pelas empresas de hoje.

Esses modelos têm em comum a crença no potencial humano e, quando depositam essa crença em desenhos de organização do trabalho criativos e inovadores, ao mesmo tempo, promovem o crescimento e o desenvolvimento das pessoas.

Além do mais, para aquelas empresas onde essa questão já é uma realidade, a comprovação nos impactos no clima e nos resultados concretos (produtividade, qualidade, custos) indica um caminho, uma opção madura de continuidade e sustentabilidade.

Assim como foi e está sendo feito com a hierarquia propriamente dita, muitas outras consequências de sua lógica precisam ser também endereçadas e banidas do ambiente organizacional e de gestão.

Alguns exemplos são a cultura da punição do erro, a rigidez funcional, o autoritarismo de líderes, as disputas de territórios e entre “feudos”, elementos que também funcionam como barreiras ao pleno exercício do potencial humano no trabalho. São, na maior parte das vezes, invisíveis; outras vezes, desaparecem do cotidiano mas não da cabeça das pessoas, que continuam agindo como se existissem.

A aposta em modelos de organização que construam pessoas e pessoas que construam modelos parece ser uma saída para as complexidades enfrentadas pelas empresas neste século e uma demonstração inequívoca da crença no potencial humano.

 

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